
Sebastião salgado, morto aos 81, alinhou militância e arte em seu trabalho
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Sebastião Salgado estava muito longe de casa. Em 1969, com o recrudescimento do regime militar, ele e a esposa, Lélia Wanick Salgado, tinham fugido do Brasil e se exilado na França. Por
isso, é fácil entender a reação dos dois quando soldados com flores nos fuzis derrubaram a ditadura salazarista em Portugal, na Revolução dos Cravos. Eles queriam ver de perto. "Um povo
totalmente esmagado de repente se encontrou livre", afirmou Salgado, um ano antes de sua morte, ocorrida nesta sexta-feira, em Paris. "Foi um momento de referência para todos nós
que sonhávamos com a liberdade." O casal pôs o filho ainda pequeno em um carro popular e zarpou para Lisboa. Lá, o jovem fotógrafo registrou não só o que veio logo depois do 25 de abril
de 1974 —sua câmera também documentou a derrocada do império colonial português, em um processo de quase dois anos, com a independência de países como Angola e Moçambique. Esse trabalho
ganhou uma exposição no Museu da Imagem e do Som (MIS), em São Paulo, com curadoria de Lélia, no ano passado. A mostra fez parte da programação especial do MIS dedicada à fotografia, com
individuais também de outros nomes, como Gabriel Chaim e Thereza Eugênia. No caso de Salgado, a exposição servia para ver o momento de formação do fotógrafo brasileiro de maior sucesso
—afinal, foi ali que ele primeiro se projetou internacionalmente. Além disso, a mostra também ajudava a entrever outro ponto pouco falado da biografia do artista: sua atuação política,
inclusive em organizações de esquerda. "Aprendi a fotografar e aprendi muito de política em Portugal", disse ele. "Os governos se formavam e caíam em uma semana. Foi o
despertar de uma nação. Além do trabalho, participamos de reuniões políticas, porque a esquerda de todo mundo estava lá: a brasileira, a francesa, a alemã." Economista de formação
marxista, Salgado levou a política para todo o seu trabalho, com séries sobre trabalhadores, o garimpo e os grandes êxodos de pessoas pelo mundo, entre outros. "Quando chegamos à
França, Lélia e eu éramos maoístas. Vivíamos na embaixada da China buscando o livrinho vermelho para distribuir em Paris. Depois, viramos marxistas-leninistas", afirmou o fotógrafo.
Essa atuação já era forte no Brasil. No começo de sua militância, Salgado foi parte da Ação Popular. Depois, quando terminou o mestrado na Universidade de São Paulo, usou essa formação
também como economista. "De tarde, eu trabalhava em uma empresa fazendo um plano econômico para a região leste. Eu era responsável pelo setor de agricultura e fazia um plano dentro dos
princípios socialistas. Tudo o que eu ganhava, eu doava para a organização." O fotógrafo prefere não revelar para qual grupo dava todo seu dinheiro. Mas era uma organização de
resistência armada que, depois do AI-5, resolveu que os mais jovens deveriam ir embora do país —entre eles, Sebastião e Lélia. Documentos do regime consultados pela FOLHA, hoje no Arquivo
Nacional, mostram que a decisão ajudou mesmo a proteger o casal. Agentes do Serviço Nacional de Informações (SNI), o todo-poderoso aparelho de espionagem da ditadura, andaram atrás do jovem
economista e estavam atentos à atuação dele no exterior. Com sua ausência do país, jamais conseguiram descobrir muita coisa e não chegaram a desvendar precisamente o envolvimento dele com
qualquer grupo armado. Ao que tudo indica, Lélia jamais foi descoberta. A única referência a ela é como "Lélia de tal", como esposa de Salgado. A ditadura só se atentou para a
militância do fotógrafo em 1974, quando ele já estava fora do Brasil havia cinco anos. Naquele momento, o nome dele apareceu em uma agenda apreendida com um militante de esquerda —e também é
citado em um depoimento de outra pessoa aos militares, como alguém que apoiava exilados que chegavam à França. "Ajudávamos os brasileiros que chegavam aqui torturados. Médicos de
esquerda entravam clandestinamente com esses brasileiros em hospitais franceses, conseguiam quartos, assistência", lembrou ele. Salgado e Lélia também se viravam para levantar dinheiro
para a iniciativa. "Viajávamos a França inteira. Fazíamos festa, vendíamos empadinha, quibe. A Lélia até dançava, mostrava o que era o samba brasileiro, para conseguirmos fundos para a
causa. As pessoas chegavam aqui completamente destruídas e precisavam alugar um apartamento, de um mínimo de móveis." A única vez que a ditadura chegou perto de associar o fotógrafo à
luta armada está em documento do SNI de 1977, que diz que o grupo de apoio do qual Salgado fazia parte era "constituído por terroristas brasileiros originários da ALN, PCdoB, MR-8 e
VAR-Palmares". O fato de estar em uma lista de brasileiros ligados à subversão criou uma dificuldade séria para o fotógrafo que precisava viajar para todo canto: em certo ponto, o
governo brasileiro se recusava a renovar o passaporte de Salgado. Documentos da Divisão de Segurança e Informações do Itamaraty mostram a deliberação interna quando ele tentava conseguir o
documento. Um deles registra a ida do diretor da agência Gamma à embaixada brasileira em Paris, para explicar como o passaporte era importante para o trabalho do jovem funcionário. O
Itamaraty, então, diz em telegrama à embaixada: "Este documento e a cobertura que lhe proporciona a agência Gamma são instrumentos valiosíssimos para o cumprimento de suas missões
subversivas contrárias ao governo brasileiro". "Foi terrível, ficamos sem passaporte brasileiro muito tempo. Entrei com pedido de passaporte francês, mas continuei lutando pelo meu
documento brasileiro", afirmou Salgado. Esse currículo político foi essencial para a cobertura da Revolução dos Cravos e tudo o que veio depois dela. Afinal, a insatisfação dos
militares que derrubaram o salazarismo estava ligada às guerras coloniais na África, onde jovens portugueses morriam e eram mutilados. Com a queda da ditadura lusitana, esses conflitos
continuaram até resultar na independência —um longo processo que exigia de salgado uma aguda leitura política. "Minha formação ideológica me deu uma vantagem imensa. Eu tinha que ter
uma capacidade de síntese, porque tinha só três ou quatro dias para resumir em imagens o que estava acontecendo", disse o fotógrafo. "Fiz o fim da guerra colonial e, depois da
independência, o abandono da África, quando as forças portuguesas passaram o poder para as forças locais. A história da Revolução dos Cravos foi a história africana."