Para despertar os homens

Para despertar os homens


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Cidade é devastada por causa do pânico gerado pela epidemia branca em Ensaio sobre a Cegueira (2008), de Fernando Meirelles Veja também Eram outros os tempos, outras as pestes. A bubônica –


ou negra – dizimou quase um terço da população europeia no fim da Idade Média, no século 14, e atacou novamente, ainda que em menor escala, a Londres de 300 anos depois, ressuscitando o


pânico medieval. A gripe espanhola chegou mais tarde, já no início do século passado, e maltratou os habitantes de Curitiba no agora remoto 1918. Situações em que a existência humana foi


despertada da distração com as pequenezas da lida diária para encarar sua própria fragilidade. Vida e morte em jogo, mais o pânico a exaltar os ânimos, compõem um painel de elementos caros à


ficção. Dramáticos por si só, uma vez que abalam a ilusão de estarmos seguros no mundo, invocando seu avesso, o pavor existencial. Cada um à sua época, os escritores Daniel Defoe


(1660-1731) e Valêncio Xavier (1933-2008) enxergaram com nitidez o potencial literário que brotava dessas comunidades atingidas por epidemias e converteram os fatos em histórias com


tratamento documental (o que se explica pela particularidade de terem sido ambos jornalistas), em que a realidade se impõe com tanta contundência que se confunde com o ficcional. Suas obras,


assim como A Peste, de Albert Camus, e Ensaio Sobre a Cegueira, de José Sara­ma­go, nobéis que se valem de estratégia distinta – inventar epidemias para sublinhar características humanas –,


são fontes interessantes para se pensar sobre o comportamento coletivo diante da ameaça de uma calamidade social. Defoe é célebre pelas aventuras solitárias de Robinson Crusoé. À parte a


carreira consagrada como romancista, em que se insinuavam os primeiros sopros do realismo, o inglês é considerado também precursor do jornalismo moderno. No livro Um Diário do Ano da Peste,


publicado em 1722, mistura as estações, construindo uma ficção factual em que a veracidade dos dados reportados é o mais importante. O autor tinha menos de cinco anos quando a peste negra


pesou sobre Londres. O personagem que criou para relatar em detalhes os acontecimentos, contudo, é contemporâneo da epidemia propagada por ratos e pulgas no verão de 1665, e se apresenta


como uma testemunha ocular com habilidades de repórter, a divulgar listas de sepultamentos a cada semana, para contabilizar o aumento da mortalidade que seria o primeiro indício da situação


de catástrofe iminente. Sem ignorar quando os números eram adulterados pelos in­­for­­mantes oficiais. Curioso é que, então, a peste chegava de longas jornadas de navio e se espalhava a


passos curtos. Uns poucos casos apareciam em uma paróquia, enquanto outras não se afetavam. Só mais tarde outra paróquia era vítima. E assim se seguiam pacientemente, uma a uma, sem o furor


que os primeiros doentes por gripe A identificados no México e nos Estados Unidos imediatamente infligiram ao resto do mundo. Por outro lado, uma coisa não mudou: tão rápido quanto a peste,


se distribuíam (e ainda o fazem) os rumores. "Eu poderia preencher este relato com as estranhas versões que, todos os dias, as pessoas davam sobre o que tinham visto", escreve


Defoe, para então criticar a infundada convicção: "Cada um ficava tão certo de ter visto o que supunha ver, que não dava para contradizê-lo sem perder um amigo ou ser considerado rude e


mal-educado por um lado, profano e insensível por outro". Na ocasião da gripe espanhola, a imprensa já era ativa. Va­­lêncio Xavier se valeu de notícias recortadas dos jornais O Diário


da Tarde e Commercio do Paraná, além de testemunhos de sobreviventes, para evocar os dias de epidemia em O Mez da Grippe, evidenciando a esquiva dos jornais em admitir a gravidade da


situação. A narrativa que salta das colagens de textos e imagens feitas por Valêncio (colaborador da Gazeta do Povo entre 1995 e 2003) ecoa hoje. Fragmentos como "não haverá


concerto" ou os órgãos públicos "aconselham insistentemente que se evite agglomeração, principalmente à noite, afim de impedir a propagação da ‘grippe espanhola’" (sic)


guardam semelhanças gritantes com os acontecimentos mais recentes. Olhar para o passado da cidade e avistar uma epidemia muito mais devastadora do que a atual pode alarmar os mais


impressionáveis, mas, também, coloca o presente sob perspectiva. Nas páginas escritas por Saramago e Camus, a veracidade dos fatos não tem o mesmo valor. As situações epidêmicas são antes


metáforas que conduzem à reflexão sob as condições da existência humana. Nossas qualidades e defeitos superexpostos por situações-limite. Existencialista francês como Sartre, com quem rompeu


por questões políticas, Camus discutiu no romance A Peste a apatia humana cultivada no cotidiano e só destituída provisoriamente em atmosferas de alerta, como na história da cidade que se


atemoriza quando ratos ensanguentados emergem dos subterrâneos prenunciando a agonia que atingirá os moradores, obrigando-os a se confrontar com a precariedade de suas vidas. Mais popular


entre esses es­­critos é Ensaio sobre a Cegueira, por conta da adaptação para o cinema comandada pelo diretor Fernando Meirelles, bem-sucedida ao recriar em imagens a contundência arrasadora


das palavras do escritor português. Saramago foge ainda mais à realidade factível, forjando epidemia inédita. A "treva branca" acomete a todos menos um e, pelo contraste da


irracionalidade violenta da multidão incapaz de enxergar à sua frente com a única mulher que conserva a habilidade de perceber o mundo (visualmente), chama à lucidez os homens que se


abstiveram de olhar adiante, cegos que estavam na fúria de satisfazer suas necessidades mais básicas.