Vargas Llosa, escritor total

Vargas Llosa, escritor total


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Há escritores profissionais, que parecem produzir em laboratório, e outros cuja literatura irrompe em torrentes, talvez como resultado de uma obsessão ou de uma paixão visceral pelas


palavras. Mario Vargas Llosa foi um caso raro: pertenceu a ambas as linhagens. Sua trajetória literária está aí para provar. Em retrospectiva, pode parecer irregular, com picos de


genialidade — como "Conversa na Catedral", "A Festa do Bode" e "A Guerra do Fim do Mundo" — e trechos mais planos ou ligeiros, como este último romance que lhe


brotou da imaginação: "Dedico a você o meu silêncio". Essas incursões tardias, assim como obras mais leves e bem-humoradas — como "Tia Júlia e o Escrevinhador",


fortemente autobiográfica —, embora não tenham o mesmo peso dos grandes romances, também carregam a marca inconfundível do autor peruano. Para ele, essas obras "menores"


funcionavam como aquecimento: um impulso antes do salto, uma preparação antes de se lançar, mais uma vez, rumo a uma obra-prima. OBCECADO PELA LITERATURA O escritor espanhol Javier Cercas,


um de seus amigos mais recentes, disse ontem: com pouco mais de 30 anos, Vargas Llosa já figurava nos livros didáticos como um dos protagonistas do "boom" da literatura


latino-americana. Suas iniciais estavam gravadas nas coleções de clássicos. Ele se formou na única escola que frequenta os verdadeiramente talentosos: a da doença da leitura — aquela que


leva o leitor a forçar a vista para decifrar letras mesmo à meia-luz. Em sua célebre "Carta a um Jovem Escritor", que permanece até hoje na cabeceira de aspirantes a escritor, ele


reafirma uma convicção fundamental: só se aprende a escrever lendo, lendo e lendo. E foi o que ele fez. Vigiou de perto Cervantes e Faulkner, mergulhou em romances de cavalaria e percorreu


estilos contrastantes. Por isso, foi descrito como um "escritor total": alguém que abre horizontes, rompe barreiras formais, experimenta técnicas narrativas inusitadas e manipula


metáforas e imagens como um alquimista em seu laboratório. Vargas Llosa era feito de literatura. Como ele mesmo revelou em longa entrevista ao jornalista espanhol Juan Cruz, tudo lhe chegava


por meio de um filtro estético, narrativo. Tudo — o bom e o ruim — servia para alimentar o vasto palco de sua imaginação. Como profissional, mantinha-se à mesa de trabalho das primeiras


horas da manhã até o meio-dia, vasculhando arquivos e documentos quando necessário, como um historiador diligente. A VERDADE DAS MENTIRAS Muito mais mágico era Gabriel García Márquez, que


transfigurava mitos, tropos e até quimeras em suas histórias. Como num capítulo de realismo mágico, Vargas Llosa é conhecido por ter desferido um soco no escritor colombiano, em um dos


episódios mais lendários da literatura hispano-americana — por causa de uma briga amorosa. Haveria causa mais apropriada à mitologia do "realismo mágico"? Apesar do


desentendimento, ambos partilhavam uma mesma convicção: a de que a realidade não se restringe ao que é visível, e que ela “engloba não apenas o que os homens fazem, mas também o que sonham


ou inventam”. A literatura é, de fato, “a verdade das mentiras”: aquilo que, mesmo inventado, soa plausível e encontra coerência interna no universo simbólico criado pelas palavras. Vargas


Llosa encontrou na ficção um refúgio contra a brutalidade do cotidiano e os males endêmicos de sua época. Para entender sua obra, é preciso partir de dois modelos fundadores. Ambos são


franceses, o que indica seu forte vínculo com a França — país que, aliás, o acolheu na Academia Francesa de Letras mesmo sem que ele houvesse escrito uma só linha em francês. Ali, o autor


peruano aprendeu com Gustave Flaubert a urgência da experimentação e a dedicação obsessiva à escrita. De Jean-Paul Sartre, absorveu a ideia de que não há literatura sem engajamento. Não que


compartilhasse da ideologia de Sartre. Vargas Llosa, desde a juventude, quando o pai lhe impôs internatos e punições severas, acreditava que as palavras podiam revelar um mundo mais justo,


menos cruel. A literatura era sua forma de resistência. Seus romances frequentemente denunciam abusos de poder, destacam a dignidade dos que vivem à margem e analisam as contradições sociais


dos países em desenvolvimento. Tanto "O Herói Discreto" (2013) quanto "Cinco Esquinas" (2016) retratam o fracasso das promessas políticas e a corrupção endêmica no Peru


do fujimorismo. Em meio ao desespero, seus personagens muitas vezes tomam o destino nas próprias mãos, arriscando-se para salvar os outros — como em "O Sonho do Celta", uma


homenagem ao irlandês Roger Casement, que denunciou os horrores do colonialismo no Congo. Vargas Llosa escrevia com notável sensualidade, o que explica a presença recorrente de passagens


eróticas em seus livros — algumas frívolas, outras envoltas em lirismo. Suas experiências pessoais moldaram também uma visão crítica da Igreja e das Forças Armadas, que ele frequentemente


retratava como instituições autoritárias e repressoras. O ENSAÍSTA LIBERAL Além de romancista e dramaturgo, Vargas Llosa foi um ensaísta prolífico. Como colunista, manteve atuação firme no


debate público, com olhar atento à política internacional. Alertava contra os riscos de uma democracia sem valores e denunciava o relativismo cultural. Envolveu-se diretamente na política,


inclusive como candidato à presidência do Peru — sem sucesso — e opinou com ênfase sobre questões polêmicas, como o separatismo catalão, na Espanha. No plano ideológico, afastou-se do


comunismo após a perseguição a escritores em regimes como o de Fidel Castro. Isso o levou a abraçar o pensamento liberal, influenciado por autores como Adam Smith, Isaiah Berlin, Karl Popper


e Friedrich Hayek. Para ele, o Estado deve ser limitado, porém eficiente, e o mercado, aliado à liberdade individual, é o melhor caminho para o bem-estar social. Em "O Chamado da


Tribo", defende essas ideias e alerta para os perigos do nacionalismo. CRÍTICA À CULTURA DO ESPETÁCULO Cosmopolita e erudito, talvez seu melhor ensaio seja "A Civilização do


Espetáculo", no qual critica a mercantilização da cultura e uma democratização mal compreendida. Inspirado por pensadores como George Steiner e Harold Bloom, acusa o pós-modernismo de


diluir os valores da alta cultura e introduzir frivolidade no universo artístico. Mas, como toda figura complexa, Vargas Llosa não escapou das contradições. Nos últimos anos, acabou ele


mesmo, involuntariamente, participando do espetáculo que tanto criticava — inclusive por suas aventuras amorosas, amplamente noticiadas. Defensor da tolerância e da liberdade de expressão,


manteve posições firmes sobre temas controversos como aborto, eutanásia e legalização das drogas, frequentemente criticando quem discordava de sua visão, o que lhe valeu acusações de


intolerância. Nada disso, no entanto, apaga sua grandeza literária. Tampouco será suficiente para ofuscar o brilho dessa figura extraordinária, multifacetada e universal. Daqui a alguns


anos, seus deslizes pessoais serão esquecidos, e novas gerações continuarão a ler seus romances não apenas para compreender o mundo, mas para vislumbrar aqueles outros mundos, mais belos,


imaginados por alguém que foi, em vida, um verdadeiro clássico. _Mario Vargas Llosa nasceu em Arequipa, Peru, em 28 de março de 1936, e faleceu em Lima em 13 de abril de 2025._ VEJA TAMBÉM:


©2025 ACEPRENSA. PUBLICADO COM PERMISSÃO. ORIGINAL EM ESPANHOL: VARGAS LLOSA, ESCRITOR TOTAL