A derrota de Putin

A derrota de Putin


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Sempre levei a sério a loucura dos outros. É meu fado. Quando todos se riem, dizendo “ele é maluco”, eu penso: “Pode até ser, mas um maluco deve ser escutado”. A esse respeito, não sofro de


preconceito iluminista, ou seja, a crença de que todo mundo, dotado da mesma informação, acabará necessariamente por chegar à mesma conclusão racional. É possível seguir todo esse percurso


e, no fim, optar pela solução irracional. Entendi bem esse preconceito nas décadas de terrorismo islamita. Rebentavam bombas nas cidades da Europa e as elites pensantes tentavam encontrar


razões para o terror que suplantassem as razões que os próprios malucos ofereciam. Eles falavam em “infiéis” e “_jihad_”. Mas as elites recusavam-se a acreditar em tal coisa. “Infiéis”?


“_Jihad_”? Não estamos na Idade Média, respondiam. A culpa só podia ser da pobreza. De Israel. Do neoliberalismo selvagem. Do aquecimento global. Do Diabo. Essa recusa do literalismo sempre


me fascinou: é como ver uma criança tapando os ouvidos e falando por cima das palavras de um adulto quando não gosta da conversa. Infelizmente, quando o assunto são armas nucleares, confesso


que a criança me diverte menos. > Ninguém compra paz verdadeira cedendo à chantagem de um > delinquente Na semana passada, Vladimir Putin fez uma declaração na tevê para anunciar três


coisas: apoia os plebiscitos nas regiões separatistas da Ucrânia; mobiliza parcialmente os reservistas para combater os avanços ucranianos no terreno; e o uso de armas nucleares para


proteger a integridade territorial da Rússia não é “_bluff_”. Sobre a primeira declaração, nada de novo: Putin aprendeu com os piores. Será preciso lembrar que Hitler, apesar da força bruta,


também precisou de plebiscitos fantasiosos para “legitimar” o seu domínio da Áustria e dos Sudetos? Putin segue o mesmo manual: integrar os territórios na Federação Russa servirá para


justificar uma mobilização mais vasta de tropas para a Ucrânia. Defender a pátria, pelo menos para ele, será defender Donetsk e Luhansk. E, quando o assunto é defender a pátria, o uso de


armas nucleares corresponde à doutrina militar do Kremlin. Se Putin não hesitaria em usar a bomba para defender São Petersburgo, será concebível que hesite para defender Kherson ou


Zaporizhzhia? Confrontados com esta pergunta, muitos especialistas preferiram desconversar. Como habitualmente. Putin mostrava a sua fraqueza; Putin despertou a fúria da sociedade civil


russa que está contra a mobilização; Putin pode sofrer um golpe de Estado; Putin quer apenas assustar o Ocidente; Putin não quer alienar o apoio da China e da Índia; Putin é doido e deve ser


internado. VEJA TAMBÉM: Sem recusar nenhuma dessas explicações, convém notar que elas são perfeitamente compatíveis com a intenção de usar armas nucleares na Ucrânia. É essa intenção, e não


os desejos que projetamos em Putin, que deve ser levada a sério. No fundo, e como escreve Ross Douthat no _New York Times_, Putin parece confrontar-se (e confrontar-nos) com um dilema


derradeiro: ou vence a guerra, ou todos vão perder. Porém, e ao contrário do que sugere Douthat, não creio que a resposta seja aceitar as condições que Putin joga sobre a mesa. Será que o


colunista acredita mesmo que ceder à chantagem de um delinquente é a melhor forma de comprar uma paz verdadeira? O exemplo da Segunda Guerra Mundial é ilustrativo: Hitler não se contentou


com a Renânia, nem com a Áustria, nem com a Tchecoslováquia. E foi interpretando os sucessivos recuos dos “apaziguadores” como um convite para avançar sempre mais e mais. Hoje, é a Ucrânia.


Amanhã, serão todas as ex-repúblicas soviéticas que cometeram a traição suprema de se afastarem de Moscou. Por paradoxal que pareça, derrotar Putin na Ucrânia ainda é o mal menor. Desde que


esse mal seja acompanhado de um aviso sério, credível e emitido pelos canais devidos de que o uso de armas nucleares pela Rússia não poupará a própria Rússia. Até agora, a administração


Biden tem seguido esse caminho, prometendo uma resposta “proporcional” e “decisiva”. É o mínimo. Porque, mesmo que os malucos não escutem e estejam dispostos ao mais irracional dos atos, há


enfermeiros em Moscou, Pequim ou até Nova Delhi que podem ter a audição mais afinada. Fazer bons negócios com um maluco é uma coisa. Sacrificar tudo por ele já me parece um excesso de


romantismo.