Os riscos da “matemágica”

Os riscos da “matemágica”


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A historinha abaixo está no livro “Economia: Modo de usar – Um guia básico dos principais conceitos econômicos”, do professor de Cambridge Ha-Joon Chang. Em algum momento da década de 1930,


na União Soviética, abriu uma vaga para o cargo de estatístico-chefe do órgão de planejamento da economia, em Moscou. Um comitê de membros do Partido Comunista foi encarregado de entrevistar


os quatro candidatos ao cargo. O comitê fez a mesma pergunta aos quatro candidatos: “Quanto são dois mais dois?” O primeiro candidato respondeu: “Cinco!” Sorrindo de forma complacente, o


presidente do comitê de seleção reagiu: "Camarada, nós apreciamos muito o seu entusiasmo revolucionário, mas este emprego é para alguém que saiba fazer contas simples de


matemática." O primeiro candidato foi educadamente convidado a se retirar. O segundo candidato respondeu: “Três!” Um membro mais jovem do comitê deu um salto da cadeira, estupefato.


“Prendam este homem! Não podemos tolerar este tipo de propaganda contrarrevolucionária! As conquistas da revolução não podem ser subestimadas!” O segundo candidato foi arrastado para fora da


sala por dois guardas e diretamente enviado para a Sibéria. O terceiro candidato respondeu: “Quatro, é claro!” Outro membro do comitê de seleção pediu a palavra e fez um discurso em tom


professoral, no qual criticava as limitações da ciência burguesa e sua fixação obtusa na lógica formal. O terceiro candidato se retirou, cabisbaixo e envergonhado. O quarto candidato


respondeu com outra pergunta: “Quanto vocês querem que seja?” O quarto candidato foi contratado. É uma piada, mas tem um fundo de verdade: um dos efeitos colaterais do planejamento central


da economia na União Soviética foi a manipulação grosseira de dados da economia (outro efeito foi a corrupção). É a chamada “matemágica”. Particularmente durante o stalinismo, a maquiagem


dos números se tornou uma prática comum por parte de burocratas mais preocupados em agradar o grande líder do que em entregar dados que refletissem minimamente a realidade. Em um regime


comunista, a matemágica pode funcionar durante um período relativamente longo, já que, inteiramente nas mãos do Estado, a economia independe de investimentos privados. Ainda assim, é questão


de tempo para a farsa ser desmascarada. Em uma democracia capitalista, a fórmula tende a fracassar mais depressa. Quando os agentes privados deixam de acreditar nos números oficiais da


economia, aumenta a aversão ao risco. Em um cenário de insegurança jurídica, esta aversão aumenta mais ainda. > No atacado, a grande mídia tenta convencer o leitor de que a > economia 


brasileira está voando. Mas a mesma grande mídia publica > diariamente, no varejo, notícias que contrariam essa informação A economia passa a depender cada vez mais de incentivos como


subsídios e outros favores governamentais. A conta não fecha. Ocorre, na melhor das hipóteses, um voo de galinha, seguido, inevitavelmente, por uma grave crise econômica, social e política.


Algo assim aconteceu na Argentina entre 2007 e 2016, durante os governos de Néstor e Cristina Kirchner: a manipulação dos dados econômicos era tão escandalosa que o país perdeu completamente


a credibilidade no mundo inteiro, afugentando investidores. A matemágica levou o país a um verdadeiro “apagão de dados”: choveram denúncias de que aquele foi um período de forte intervenção


política no INDEC (Instituto Nacional de Estatísticas e Censos), similar ao nosso IBGE. A economia argentina perdeu a bússola, porque a maquiagem de um indicador contamina todos os outros.


Basta dizer que a inflação oficial de 2007 foi de apenas 8,7%, mas levantamentos alternativos apontavam que a inflação real tinha ficado entre 22,3% e 26,2%. Isso impacta os dados sobre a


pobreza e a distribuição de renda. Todos os números oficiais se tornaram uma ficção. Um estrangeiro que leia com alguma atenção o noticiário sobre a economia brasileira tem a sensação de que


alguma coisa estranha está acontecendo. No atacado, a grande mídia tenta convencer o leitor de que a economia brasileira está voando. Mas a mesma grande mídia publica diariamente, no


varejo, notícias que contrariam essa informação. Exemplos colhidos a esmo: “Preço de alimentos já sobe mais que o dobro da inflação este ano” (“O Globo”, 14/03); “Rede de supermercados Dia


vai fechar 343 lojas no Brasil e concentrar operações em São Paulo (G1, 14/03); “Pedidos de seguro-desemprego crescem no primeiro bimestre e atingem maior número em nove anos” (TV Cultura,


14/03); “Americanas vende ovo de páscoa com uso do FGTS” (“Folha de S.Paulo”, 13/03); Subway pede recuperação judicial com dívidas de R$ 482 milhões” (Poder360, 13/03); “Prévia do primário


indica déficit de R$ 61,3 bi em fevereiro” (Poder360, 13/03); “Nível de endividamento das empresas está próximo ao da crise de 2015” (“Folha de S.Paulo”, 12/03). Tudo isso apenas em três


dias, e sem fazer uma pesquisa muito profunda. Longe de mim insinuar que está acontecendo no Brasil algo parecido com o que acontecia na União Soviética de Stálin ou na Argentina de Néstor e


Cristina Kirchner. De qualquer forma, a minha opinião não importa: quem sou eu na fila do pão? Mas, se e quando o povo sentir no bolso que a situação econômica do país está se deteriorando,


não haverá estatística oficial nem boa vontade da grande mídia que dê jeito. Até porque a grande mídia também já perdeu em grande parte a sua credibilidade. Tomara que isso não aconteça.


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