
Esperar contra toda esperança
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As vésperas do ano-novo são, tradicionalmente, a época de se renovar esperanças, de recobrar o fôlego com relação à vida e reforçar os bons propósitos, e de desejar, para o período que se
inicia, coisas boas aos familiares, aos próximos, e até aos desconhecidos. Entretanto, esse nosso mundo vem ostentando uma face cada vez mais machucada e aflita, e parece que, a cada ano que
passa, as coisas estão piores, os crimes são mais cruéis, as pessoas mais insensíveis, mais profunda é a depressão e maior é o caos reinante nas cidades. Parece que, conforme os anos vão
passando, a injustiça fica cada vez mais estabelecida, a maldade mais normalizada, que o mundo está se transformando num lugar pior e que os motivos para se ter alguma esperança estão, cada
vez mais depressa, diminuindo – desaparecendo. Este é o nosso século, em que triunfam os maus. “Mas há sinais de que agora os povos estão começando a compreender alguma coisa... Talvez agora
as coisas comecem, aos poucos, a melhorar, e o mundo se transforme, enfim, num lugar melhor...”, dizem alguns, com as sobrancelhas altas; e esse infundado otimismo, contrariado pelos fatos
mais patentes, é o que se converte no pior dos pessimismos, na mais amarga das desilusões. Estes mesmos dirão, em seguida, que o mundo é um lugar ruim demais para que nele nasçam crianças
novas, para as quais o melhor é nem sequer vir a existir, para que assim escapem, em absoluto, do sofrimento certo. Não seria, então, um pouco bobo ser otimista no último dia de dezembro,
fazer brilhar uma esperança de artifício e vestir uma paz de camisa branca, fazendo força para não questionar se tudo isso tem, de fato, algum fundamento? Queremos ter esperança, e sentimos
que, sem isso, não haverá sentido em continuar. É preciso esperar dias melhores! Mês será que temos claro o que é que esperamos? Qual é o bem que colocamos lá no futuro, e que nos atrai,
como uma meta desejável? Qual é a causa da nossa esperança, que faz os nossos pés se moverem em sua direção? Qual é a felicidade final que miramos e que nos impulsiona a buscá-la? Se não o
soubermos de fato, o nosso confuso otimismo por dias melhores será fraco, será débil como uma pipoca que estoura e esfria, fugaz como uma rolha de champanha. O apóstolo Pedro, na primeira de
suas epístolas (1Pd 3,15), diz com voz imperativa que devemos estar sempre prontos a responder a todo o que nos pedir a _razão_ de nossa esperança. Ou seja, a esperança tem uma razão, uma
causa bem definida, a qual devemos conhecer e saber com tanta clareza que estejamos sempre prontos a responder a quem nos perguntar por ela. Sendo assim, só se pode compreender e viver a
essência da verdadeira esperança quando se consegue desmascarar todas as suas imitações deformadas. > O otimismo ideológico não passa de uma máscara para um mundo sem > nenhuma
esperança, que deseja esconder seu profundo desespero da > felicidade. Porque a sua felicidade é falsa, não pode se > concretizar Não vejo por que me alongar complicando a questão,
esmiuçando as inúmeras variações de detalhe e as nuances de cada uma das muitas “ideologias do otimismo”, que são, todas elas, armadilhas, fachadas decoradas para esconder o maior dos
desesperos. Todos os otimismos desse tipo têm como objetivo e como meta a utopia de um mundo livre e feliz para sempre, uma sociedade perfeita, em que todos vivessem em paz e em comodidade,
em que a história teria alcançado seu objetivo, e a humanidade, enfim, a sua plena maturidade. Todas se resumem a imaginar aquilo que John Lennon manda imaginar na canção. O mundo desses
otimismos é pasteurizado e fechado numa única direção: não tem Céu nem Inferno, não tem povos nem fronteiras, não tem passado, só tem saída para a frente, no futuro. No futuro está essa
homogênea, estática e chapada felicidade, de todos “vivendo a vida em paz”. O Deus dessas ideologias do otimismo é sempre a história, o tempo, o próprio futuro. E qualquer um que se negue a
crer no “otimismo oficial” – seja o progresso, seja a revolução, seja a evolução dos espíritos em direção à luz – é um sacrílego, um profanador, um inimigo da humanidade, e o verso “_I hope
someday you’ll join us_” assume rapidamente um tom ameaçador. O otimismo ideológico não passa de uma máscara para um mundo sem nenhuma esperança, que deseja esconder seu profundo desespero
da felicidade. Porque a sua felicidade é falsa, não pode se concretizar; ela só existe na mente abstrata de quem não queira encarar os duros fatos, os problemas insolúveis da sociedade
humana, os erros irreparáveis, a impossibilidade da paz, a corruptibilidade intrínseca da política e dos poderosos, a chaga original que está em nossa própria natureza. Este nosso século, em
que triunfam os maus, é _o século_, e será sempre assim. Isso explica a angústia irracional e a revolta desses “otimistas” quando qualquer acidente mais vistoso no desenvolvimento técnico
ou econômico vem despertar dúvidas sobre o dogma do progresso – quando estoura a guerra e a bomba atômica –; isso explica a sanha, a fissura de quem, mesmo vendo um mar de sangue se sobrepor
a outro, diz: “Foi assim porque ainda não deu certo. Devemos tentar outra vez”. Haverá sempre surtos de autodefesa contra qualquer fato que atente contra a crença no aguardado “planeta da
paz” ou na sociedade perfeita do futuro, pois, ao mesmo tempo que eles não podem vir a existir, o coração humano anseia por alguma esperança, e o homem não consegue deixar de se voltar para
o futuro, não tem como não ter a face voltada para frente – assim como não tem como deixar de caminhar, passo atrás de passo, em direção àquela que o aterroriza, a morte. Mas as ideologias
do otimismo não podem nada contra a morte... A esperança verdadeira, porém, a transcende com alegria. A esperança verdadeira não é um otimismo, porque não tem expectativa numa paz e numa
comodidade neste mundo, e nem mesmo numa sociedade perfeita, sem injustiças. Mas também não é um pessimismo, porque não acredita, prostrada com o rosto em terra, que portanto tudo está
perdido, que o ser humano é um grande fracasso fadado à dor, que devemos nos vestir de preto e bater no peito em prantos, desistir da vida e buscar o seu fim. A verdadeira esperança vence o
pessimismo atravessando-o por dentro, e transcendendo-o: tudo estará perdido neste mundo, sim; mas _ainda que tudo esteja perdido neste mundo_, nem _tudo_ está perdido. Ao contrário, muitas
vezes é justamente perdendo nesta vida, perdendo tudo o que seja deste mundo, que se ganha algo de ainda mais valor, algo eterno e indestrutível, o qual devemos, confiantes, esperar. A
“utopia” do mundo feliz deve ser esperada por nós, mas não adiante, no horizonte fechado do tempo, e sim num cruzamento, naquele caminho que se abre onde tocam-se o horizonte e o eixo
vertical que liga o céu e a terra. O homem não está sozinho, ele não é o único que age, nem na história nem em sua própria vida individual, e por isso a morte, a solidão, a dor, a derrota, a
destruição – onde terminam todos os otimismos seculares – não têm a palavra final. No dia eterno, os sofrimentos terão sua paga, a justiça será feita – isto não é otimismo, é esperança.
VEJA TAMBÉM: Dante Alighieri, na narração de sua passagem pelo _Paraíso_, conta que foi testado, que passou por uma espécie de questionário, no qual os interrogadores eram os três principais
apóstolos de Cristo: Pedro, Tiago e João. Primeiro (canto XXIV), São Pedro o interroga a respeito da fé. Em seguida (canto XXV), São Tiago faz com ele uma sabatina a respeito da esperança,
para que depois (idem) São João fale com ele sobre a caridade. Portanto, essas três virtudes são, por assim dizer, obrigatórias, são passe de entrada para o Paraíso. Quando perguntado por
São Tiago sobre o que é a esperança, Dante responde (67–69): “Esperança é uma espera segura da glória futura, a qual produz graça divina e antecipado mérito”. A esperança é, portanto, a
força da alma de manter-se na expectativa, na segura e firme espera da felicidade, da glória futura, e que, estando presente, produz em nós a graça. E ela vem, como lemos ali na própria
_Comédia_, depois da fé e antes do amor; é a segunda das três virtudes divinas, a que liga a primeira e a terceira. Portanto, a esperança não vem solta, como uma vã euforia, como a convicção
de um tolo na veracidade de seu próprio pensamento ou na força de seu próprio imaginar, como fazem aqueles que, desejosos de que as coisas vão bem e deem certo, acreditam ingenuamente que a
viagem no tempo verbal, que a conjugação mágica das palavras, vá mudar a realidade: “Não _vai_ dar certo: _já_ deu!” Lamento, ainda não deu. Mas dará, assim devemos esperar, porque temos
fé, isto é, temos uma confiança justificada pela inteligência (por luzes naturais e sobrenaturais), em alguns fatos cabais que garantirão o futuro. O homem nada pode por si, mas 1. o mundo,
a história e a vida de cada um é regida por um Deus onipotente; 2. um Deus que ama infinitamente os homens, suas criaturas, as quais criou por amor e para amar; 3. um Deus que é fiel às suas
promessas, aquelas que fez a esses mesmos homens que ama. É a existência desse Deus de misericórdia e as promessas seladas por Ele que fazem surgir em nós a esperança, e é por isso que,
_apesar de tudo_, não nos sentimos sós, nem inúteis, nem abandonados, mas sempre, ainda que sob o peso dos piores sofrimentos e angustiados pelas mais humilhantes derrotas, sabemo-nos
integrados numa história transcendente, num destino de salvação, que levará ao Paraíso. Essa nossa esperança de termos nossas lágrimas enxugadas, mesmo que apenas depois da morte, faz ecoar,
inclusive, a voz dos antigos filósofos, reafirmando o que disse Sócrates, no diálogo _Górgias_ (469 b-c–509-d): É melhor antes sofrer uma injustiça do que praticá-la, porque o pior dos
males é agir mal e carregar em si o peso de sua infração; e o que disse Boécio, na _Consolação da filosofia_ (IV): “A infelicidade não recai sobre a vítima, mas sobre o autor da má ação”.
Mesmo que, por misteriosas razões, as coisas neste mundo não o representem muito bem, buscar a bondade e a justiça é intrinsecamente bom, e entregar-se à injustiça e à maldade é
intrinsecamente mau, de modo que a retidão ou a impostura nas ações atinge em primeiro lugar aquele que assim age, e define o seu destino. O sucesso dos maus é aparente. Eles reinam neste
século, reinarão sempre no século, no tempo, neste mundo, mas passarão com ele, porque é certo que este século, o século, este mundo, passará e será julgado, isto é, terá feita a sua
contabilidade, e todas as boas e más ações serão cobradas e ressarcidas. Nós, que temos esperança na justiça vindoura, veremos os maus muito confundidos. > O ano novo que se inicia será
igual ou, provavelmente, pior do que > este que passou – mas isso não nos aflige, nem põe em xeque a > nossa alegria. Nós é que seremos melhores, esperando contra toda > esperança
Não bastasse tudo isso, atrevo-me a dizer que ainda tem mais. Porque, além de ter confiança firme nesse futuro, nós que temos esperança não vivemos inteiramente a crédito, como cegos,
aguardando toda a recompensa para depois. Pois todas as nossas aflições e dificuldades podem ser vistas, pelo prisma dessa esperança verdadeira, como aparências de sentido duplo, como
ingressos para a felicidade. E a felicidade dos justos, a felicidade que se dá fora do tempo, não será sentida apenas após a morte, após o fim do mundo. Aquilo que se passa no interior do
espírito, no centro do coração, já está, _agora_, fora do mundo e fora do tempo: já está no caminho aberto pela cruz, e nos dá um antegosto do sabor da vida eterna. Para o coração mergulhado
na esperança, já teve início o Ano Novo, e a cada lágrima caída exteriormente corresponde, interiormente, uma pequena alegria espiritual. Portanto, se queremos renovar nesta passagem de ano
as nossas motivações, se queremos recobrar o ânimo para crescer, para progredir no bem, se queremos firmar ou reafirmar as nossas escolhas de vida, a nossa entrega e a nossa dedicação,
precisamos abandonar as vãs esperanças numa felicidade automática; abandonar os otimismos simplórios que aguardam um mundo lindo e perfeito, que esperam pessoas melhores ao nosso redor, bom
tratamento e reconhecimento, sucesso e justiça. Nossa esperança está na vida que abarca essa vida, no sentido deste mundo, que não está nele próprio, mas que o transcende, e que o julgará. É
por conta dessa esperança somente, e de nenhuma outra, que seremos impulsionados a nos esmerar nas pequenas coisas, e trabalhar, como um ourives, as delicadas filigranas da vida diária: a
prestar atenção nas necessidades do outro, a superar os pequenos conflitos antes que gerem os grandes, a aprender a escutar mais do que falar, a vencer o cansaço provocado pela rotina, a
retribuir com gratidão os pequenos esforços do outro, e a renovar nossos compromissos de fidelidade. Se queremos ter um feliz ano novo e desejá-lo aos outros, não podemos perder de vista a
meta final que dá sentido e valor à nossa existência inteira e a cada um dos nossos dias, de nossas escolhas, de nossas ações, de nossas reações, a verdadeira esperança capaz de instigar em
nós as sólidas e profundas motivações de que precisamos para o empenho cotidiano na transformação do mundo – do _nosso_ mundo, do nosso lar, dos nossos relacionamentos, do nosso ser. Não, o
ano que vem não será melhor. O ano novo que se inicia será igual ou, provavelmente, pior do que este que passou – mas isso não nos aflige, nem põe em xeque a nossa alegria. Nós é que seremos
melhores, esperando contra toda esperança. O mal e a injustiça do ano e do século só fazem contrastar mais, na treva do mundo, a cálida luz da nossa fé, e a nossa firme, certa, a nossa
segura esperança na glória futura, que faz brotar na alma a graça e o mérito.