Os piores dos melhores, última parte

Os piores dos melhores, última parte


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O pecado mortal dos antologistas é a arrogância. Principalmente quando, por meio de títulos bombásticos, buscam sintetizar uma época, uma escola ou - o que é pior - um século. Foi assim que


tivemos, no início dos 2000, "Os Cem Melhores Contos Brasileiros do Século" e "Os Cem Melhores Poetas do Século". Quanta pretensão! No caso do editor, cujo objetivo


primordial é vender seu peixe, tudo bem. Marketing por marketing (ou picaretagem por picaretagem), mais vale vender muito do que ser modesto. No caso dos autores, tudo bem também. Quem não


gostaria de ser um dos melhores do século? O chato é quando a escolha dos pretensos melhores cai na mão de vaidosos onipotentes, assumindo a tarefa de espremer um século dentro de um livro,


revelando auto-suficiência e excessiva vontade de pontificar. Assim foi que as antologias referidas acima ficaram por conta de um professor universitário (Ítalo Moriconi) e de um jornalista


e ex-poeta de vanguarda (José Nêumane Pinto), Senhores Supremos da Verdade Absoluta. Vaidade por vaidade, todos saíram ganhando. O editor, porque emplacou seus "melhores" e criou


um facilitário para leitores preguiçosos: "Ora", pensará ele, "se em um único livro posso ler os melhores do século, pra que ficar lendo dezenas de livros?". O


antologista, porque foi paparicado por turbilhões de autores e ainda faturou grana e prestígio por conta do trabalho alheio. Os autores, finalmente, porque ganharam R$ 200 por texto (no caso


dos contistas, que não sei o valor pago aos poetas) e ainda foram lá pra cima, bem lá em cima. Certo ou errado? Certo e errado, claro, nessa balança da bagunça valem os dois pesos e as duas


medidas. BEST SELLERS O escritor Christopher Morley, em "Parnassus on Wheels", buscou santificar a profissão de editor, escrevendo: "Senhor, quando você vende um livro para


alguém, você não está vendendo 12 onças de papel e tinta e cola - você vende uma vida inteiramente nova. Amor e amizade e humor e navios no mar à noite - todo o Céu e toda a Terra estão num


livro, num livro de verdade". Este era o sonho que movia os velhos editores, pelo menos na aparência. Mesmo porque o texto acima abre o "Bookselling in America and the World",


publicado em 1975, comemorando os 75 anos de existência da Associação Americana de Livreiros. Nesse trabalho, estão listados os quatro livros mais vendidos ano a ano, entre 1900 e 1974, nas


áreas de ficção e não ficção. Vale lembrar que raríssimos desses livros tinham alguma qualidade literária, valendo muito mais pelo que, já naquela época, caracterizava o mercado editorial:


o prestígio social e mundano do autor. Afinal, sua pretensão, apesar da nota introdutória, era mesmo a de fazer o elogio do mercado - e dos mais vendidos. Nascia com força o marketing


editorial. Começava a despontar a sereia que, nos últimos 50 anos, atraiu gregos e troianos, afogando a todos no pântano da troca de favores editorial, social, política, mercadológica,


jornalística e o diabo a quatro. CANÔNICOS Exemplarmente modesto, o poeta Manuel Bandeira preferiu chamar sua antologia dos melhores poetas brasileiros de todos os tempos de, simplesmente,


"Poesia do Brasil". Nenhum apelo retumbante, fato tão banal atualmente, e sem o qual nada se vende, nada se compra, nada se cria e nada se transforma. Neste mesmo livro, além de


exibir sua vasta cultura na seleção de poetas e poemas de sua preferência, sem alarde e sem fanfarras, ainda chamou o crítico José Guilherme Merquior para selecionar os autores modernistas,


já que teria obrigatoriamente de se incluir, passando por vaidoso, ou de se excluir, passando por falso modesto. Foi ainda capaz de escrever o seguinte, na introdução: "Naturalmente


esta antologia terá os consabidos defeitos de todas as antologias. Não é nada fácil escolher os autores, e nos autores os melhores poemas. A verdade é que nenhuma antologia pode por si só


representar a poesia de um país: para isso são necessárias algumas antologias. A nossa pretende apenas ser uma dessas algumas". Publicado em 1963, "Poesia do Brasil" continua


sendo um marco na criação do cânone literário brasileiro, junto com talvez não mais que dois outros livros: "Formação da Literatura Brasileira", de Antonio Candido, e


"História Concisa da Literatura Brasileira", de Alfredo Bosi. Nenhum deles apelativo. DEUS CRONOS Em outro trabalho admirável, Jorge Luis Borges, apresentando sua "Nueva


Antología Personal", escreveu: "O Hindustão atribui seus grandes livros ao labor das comunidades, a personagens desses livros, a deuses, a heróis, ou simplesmente ao Tempo. Tais


atribuições são, sem dúvida, meras evasivas ou jogos; não porém a última. Ninguém pode compilar uma antologia que seja muito mais do que um museu de suas ‘simpatias e diferenças’, mas o


Tempo acaba por editar antologias admiráveis. O que um homem não pode fazer, as gerações fazem. (...) Não há antologia cronológica que não comece bem e não termine mal". Como sempre,


Borges tinha razão. Sabiamente, revela quais textos seus preferia, e quais tinham sido preferidos pelos leitores. Entre uns e outros, ficava com ambos, de modo que sua antologia é uma


obra-prima de bom senso e bom gosto. CONCLUSÃO Quando tentei organizar uma seleta de antologia poética, dei de cara com tal quantidade de obras que desisti. Então fiquei pererecando entre


alguns livros e outros tantos conceitos, porque afinal era preciso concluir alguma coisa. O que me levou a essa longa digressão sobre poetas e antologistas foi a mais recente antologia que


recebi, "Roteiro da Poesia Brasileira Anos 70", com seleção e prefácio de Afonso Henriques Neto. No fundo, eu queria mesmo era chegar ao seguinte: se aquele que seleciona é ruim


(como neste caso), não há a menor dúvida de que a antologia será ruim, como será ruim a maioria dos poetas e dos poemas selecionados. Tudo muito simples, não é mesmo? E foi preciso escrever


tanto pra dizer tão pouco!