
Wislawa szymborska e a poesia real - século diário
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Distanciamento do sublime, do elevado Biblioteca Pública do Paraná COMO SE DISSE NO TEXTO ANTERIOR SOBRE A POETA SZYMBORSKA, um dos modos de situar sua poesia, muitas vezes, é uma
característica de seus versos terem descrições de cenários que podem remeter a historietas, pequenas narrações rápidas, em que a coda leva a uma reflexão filosófica sobre o que foi contado
nos versos como um todo. Em poemas como _Acontecimento_, por exemplo, Szymborska coloca indagações a respeito da natureza dos acontecimentos sobre os quais não se tem nenhum controle e que
determinam a vida ou a morte. Por sua vez, no poema “Medo do palco”, esse caráter narrativo de seus versos leva à poeta Szymborska a tecer uma ironia a respeito dos poetas como prosadores,
tentando tirar uma certa aura da poesia que poderia levar a mistificações sobre esta atividade literária como algo “elevado”, “superior”. A tendência do senso comum em situar a poesia na
dimensão do sublime contrasta com a colocação da prosa no terreno do mundano em relação a este mesmo entendimento comum. Szymborska, com sua poesia, torna estes limites tênues e até os
subverte, pois tal noção é falsa, como se houvesse uma hierarquia na literatura, em que existe o sublime que é tomado por superior ao mundano e quetais. Por outro lado, nos remetendo às
temáticas que a poeta Szymborska gosta de elencar em seus versos e, mais uma vez, fazendo este distanciamento do sublime, do elevado, temos a ciência como um dos interesses desta poeta, em
que podemos citar a astronomia, a matemática e a biologia. A matemática aparece no divertido poema _Número Pi_. Na biologia, a questão da evolução das espécies aparece em vários poemas,
incluindo _Thomas Mann_, em que o nome do escritor apenas dá o título ao poema, e em seus versos aparecem reflexões sobre a fantasia, de um lado, e a questão da evolução, refletindo sobre os
fatos da natureza, de outro lado. A fantasia, por sua vez, ligada ao prodígio, escapando às leis naturais, é a mão que escreve, isto é, a literatura de Thomas Mann. Por sua vez, o
antropocentrismo passa longe das reflexões de Szymborska em seus poemas, no que temos versos que tematizam sobre entes que desarticulam tal discurso, com destaque para indagações sobre uma
pedra, um grão de areia, uma planta e até microrganismos, colocando esta perspectiva como afirmativa da complexidade do mundo e a limitação da consciência humana em relação a este mundo. A
poeta Szymborska, a propósito, declarou: “Dou voltas incessantemente ao redor deste mundo que não é apenas nosso, mas também de muitas outras formas de vida, e procuro entender como elas nos
recebem.” No poema _O silêncio das plantas_, a poeta Szymborska situa o eu lírico no esforço de um diálogo impossível entre o ser humano e o mundo vegetal. No poema _Visto do alto_, por sua
vez, o encontro de um besouro morto num caminho campestre levanta a comparação do sentido desta morte com a morte dos homens. E no poema _Microcosmo,_ é dado destaque aos microrganismos. O
questionamento da tradição, nos versos da poeta Szymborska, tem um papel importante, pois quando a poeta tematiza personagens bíblicos, mitológicos, sobretudo da mitologia greco-romana, além
de interpretações poéticas da literatura e da História, por fim, colocam verdades da tradição em suspenso, esvaziando esta, e destacam a dimensão humana em tais temas. No poema _Noite_, o
eu lírico se rebela diante do sacrifício de Isaac por Abraão a partir de uma ordem divina. No poema _Monólogo de Cassandra,_ a profetisa deplora sobre o seu afastamento da vida e das
pessoas. No poema _O resto_, Ofélia, personagem de Shakespeare na peça _Hamlet_, não cai na loucura por causa da rejeição amorosa, mas vira uma atriz preocupada com a vida prática, a sua
roupa e seu cabelo, por exemplo. LIVRO III – MUITO DIVERTIDO CENSO: O poema subverte a herança histórica e a situa em um novo paradigma a partir de novas descobertas arqueológicas: “Na
colina onde ficava Troia/foram escavadas sete cidades./Sete cidades. Seis a mais/para uma única epopeia./Que fazer com elas? Que fazer?/Arrebentam os hexâmetros,/um tijolo efabular espia
pelas brechas,/no silêncio do filme mudo, muros derrubados,/vigas queimadas, correntes rompidas,/cântaros esvaziados até a última gota”. O poema segue com as sensações da poeta sobre tal
derrubada de paradigma histórico e suas consequências, e as imagina, sendo que um dos fatos principais seria a implosão da epopeia, e a substituição desta por uma nova versão caótica para
historiadores e literatos, e a descrição de Szymborska aqui é rica e inteligente, no que segue: “Nossa dose de antiguidade vai crescendo,/fica apinhada de gente,/inquilinos brutais se
empurram na história,/hordas de carne para a espada,/extras de Heitor iguais a ele em bravura”. A multiplicação das cenas, as dobras que as novas descobertas provocam, e todos os seus
desdobramentos continuam a inspirar os versos de Szymborska: “Era tão fácil não saber nada sobre isso,/tão comovedor, tão amplo.” (…) “Que fazer com eles? O que lhes dar?/Algum século pouco
povoado até agora?/Um pouco de apreço pela arte da ourivesaria?/Pois é muito tarde para o juízo final.” A poeta descreve também a crise épica, a implosão do que era narrado pela epopeia até
então conhecida, e descreve a estranheza deste novo mundo: “Nós, três bilhões de juízes,/temos nossos problemas,/nossas turbas inarticuladas,/estações, arquibancadas, procissões,/incontáveis
números de estranhas ruas, andares, paredes./Desencontramo-nos para sempre nas grandes lojas/comprando um jarro novo./Homero trabalha num instituto de estatística./Ninguém sabe o que ele
faz em casa.” E tal estranheza é tomada, por fim, literalmente, na coda do poema, em que Homero é diluído, por fim, numa atividade comum, incógnito. MONÓLOGO PARA CASSANDRA: O isolamento de
Cassandra, refugiada em seu monólogo, nos dá uma sensação do mundo na perspectiva angustiante de um distanciamento, no que temos: “Sou eu, Cassandra./E esta é minha cidade sob as cinzas./E
estes são meu bastão e fitas de profeta./E esta é minha cabeça cheia de dúvidas.”. A profetisa ainda tenta enaltecer o que ainda possui, mas logo seu mundo é desvelado em seu próprio
monólogo, como um tom hipnótico e repetitivo de uma monotonia conquistada em sua solidão perpétua, no que vem: “Triunfo, é verdade./Minha razão em chamas até lambeu o céu./Só os profetas
desacreditados/têm essa vista./Só aqueles que tiveram um mau começo,/e tudo podia concretizar-se tão rápido,/como se eles nunca tivessem existido.” Do alto de uma torre de marfim, em que seu
privilégio de ver o futuro é o que ela entende por dom, paga o preço de ignorar o mundo real, palpável, das pessoas reais e dos fatos cotidianos, e seu isolamento traz esta iluminação
espiritual triste, uma ascese sobre o futuro, uma visão dormente, no entanto : “Recordo claramente agora/como as pessoas, ao me ver, emudeciam./Morria-lhes o riso./Desentrelaçavam as
mãos./As crianças corriam para as mães.” (…) “Eu os amava./Mas amava do alto./Acima da vida./Do futuro. Onde sempre é vazio/e nada é mais fácil do que ver a morte.” O vazio e a morte são as
sensações com que flerta Cassandra, agora, neste seu distanciamento, num mundo supralunar sem contato com a vida que pulsa nas coisas dadas, vividas terrenamente, no que segue : “Lamento que
minha voz fosse dura./Olhem para si mesmos das estrelas – bradava -” (…) “Viviam na vida./Varridos por um grande vento./Já condenados./Presos desde nascidos em corpos de despedida.” (…)
“Foi como eu falei./Só que disso não resulta nada./E estas são minhas vestes chamuscadas./E estes são meus trastes de profeta./E esta é minha face contorcida./Uma face que não sabia que
podia ser bela.”. Sua constatação, mais uma vez, é de uma coda vazia, em que a poesia aqui se conforma a uma fatalidade fria e dura. DECAPITAÇÃO: A poeta conta com ironia a História da
Inglaterra, num poema romanceado em que se dá o contraste entre duas rainhas, uma condenada e uma vitoriosa, e as cores de suas vestes, no que temos : “Decote vem de decollo,/decollo
significa corto o pescoço./A rainha da Escócia Maria Stuart/chegou ao patíbulo numa veste apropriada,/a veste era decotada/e vermelha como uma hemorragia.” (…) “No mesmo momento/num quarto
apartado/Elizabeth Tudor, rainha da Inglaterra,/estava à janela num vestido branco./O vestido vitoriosamente abotoado até o queixo/terminando num rufo engomado.” (…) “A diferença no traje –
sim, dessa tenhamos certeza./O detalhe/é inabalável.” A coda conclui esta ironia rascante, em que toda a descrição parece confluir para um chiste, uma constatação de mofa sobre o conflito
histórico entre os Stuart e os Tudor na História inglesa. THOMAS MANN: O poema que tem o nome de um escritor, desfaz a fantasia tanto literária como das fábulas e dos mitos e logo coloca a
natureza tal qual ela é como contraste à falta de parâmetros de animais fantásticos e as concepções imaginosas deste mundo fictício e fabular: “Caras sereias, assim tinha que ser,/amados
faunos, ilustríssimos anjos,/a evolução definitivamente os renegou./Não lhe falta imaginação, mas vocês e suas/barbatanas do devoniano e peitos do holoceno,/suas palmas digitiformes e cascos
nos pés,/seus braços não em vez de, mas além de asas,/esses seus esqueletos, deus nos guarde, difiléticos,/com caudas fora de hora, chifres por despeito,/bicos surrupiados de pássaros,
essas misturas, aglutinações,/esses mistifórios finórios, esses dísticos,/rimando gente com garça com tal mestria/que voa, é imortal e tudo sabe/-vocês devem admitir que seria uma
piada/eternos excessos e chateações/que a natureza não quer ter e não tem.” O chamado mistifório do mundo das fábulas é renegado pelo mundo natural e real da evolução das espécies, pois todo
o excesso imaginoso aqui é submetido à eficiência dos seres na natureza e a evolução aparece como o governo que faz esta seleção entre os seres que desempenham melhor, o que no mundo
imaginário e fantástico da fábula não existe, pois lá a prioridade é o excesso e a fantasia livre e ilimitada, no entanto, Szymborska delimita este mundo natural tal qual ele é, e suas
breves concessões funcionam aqui como uma ironia em relação à fantasia e à fábula, no que vem : “Já é bom ela permitir a certo peixe voar/com desafiadora perícia. Cada voo desse/é um consolo
na norma, uma anistia/da necessidade universal, um dom maior/que o necessário para que o mundo seja mundo.” (…) “Já é bom ela permitir cenas tão faustosas/como um ornitorrinco amamentando
os filhotes./Poderia se opor – e quem de nós descobriria/que foi roubado?” (…) “Mas o melhor é que/lhe escapou o instante em que surgiu um mamífero/com a mão prodigiosamente emplumada com
uma Waterman.” LIVRO IV – TODO O CASO AS CARTAS DOS MORTOS: A poeta aqui descreve o desnível entre o mundo dos mortos e as expectativas testamentárias, prospectivas, e demais esforços de
planejamentos, e o mundo dos vivos, dos que ficam: “Lemos as cartas dos mortos como deuses impotentes,/mas deuses assim mesmo, porque conhecemos as datas posteriores./Sabemos quais dívidas
não foram pagas./Com quem as viúvas rapidamente se casaram./Pobres mortos, mortos cegos,/enganados, falíveis, canhestramente previdentes./Vemos as caretas e os sinais feitos pelas
costas./Capturamos o som de testamentos sendo rasgados.” Este descompasso entre o esperado e o que acontece é a ironia do poema e da poeta Szymborska entre os anelos daqueles que se foram e
o que aconteceu depois, no que vem: “Seu mau gosto, Napoleão, vapor e eletricidade,/seus remédios mortíferos para doenças curáveis, seu tolo apocalipse segundo são João,/o falso paraíso na
terra segundo Jean-Jacques …/Observamos em silêncio seus peões no tabuleiro,/só que movidos três casas à frente./Tudo que previam aconteceu de modo totalmente diverso,/ou um pouco diverso,
que é o mesmo que totalmente diverso./Os mais fervorosos nos fitam nos olhos com confiança/porque, segundo suas contas, verão neles a perfeição.” As contas feitas, por sua vez, todas revelam
a ignorância essencial, e que está inserida neste mundo dos acontecimentos. A ironia, como coda, faz troça desta pretensa perfeição. AUTONOMIA: A cisão da existência parte de uma narração
mitológica, no que a poeta Szymborska contrasta um lado auspicioso com outro lado de revezes: “Em perigo, a holotúria se divide em duas :/com uma metade se entrega à voracidade do mundo,/com
a outra foge.” (…) “Desintegra-se violentamente em ruína e salvação,/em multa e prêmio, no que foi e no que será.” (…) “No meio do corpo da holotúria se abre um abismo/com duas margens
subitamente estranhas.” (…) “Em uma margem a morte, na outra a vida./Aqui o desespero, lá o alento.” (…) “Se existe uma balança, os pratos não oscilam./Se existe justiça, é esta.” A justa
medida é também tematizada nesta divisão perfeita, contudo, quando a aplicamos à dimensão humana, esta fronteira se borra e toda uma amálgama de fatos e sensações se dá em toda a sua
complexidade, o que ocorre também nesta divisão final entre vida e morte, no que vem: “Morrer só o necessário, sem exceder a medida./Regenerar quanto for preciso da parte que restou.” (…)
“Também nós, é verdade, sabemos nos dividir./Mas somente em corpo e sussurro interrompido./Em corpo e poesia.” (…) “De um lado a garganta, do outro o riso,/leve, logo sufocado.” (…) “Aqui o
coração pesado, lá non omnis moriar,/três palavrinhas apenas como três penas em voo.” (…) “O abismo não nos divide./O abismo nos circunda.” (In memoriam Halina Poswiatowska). A verdade é que
o humano está permeado por tudo e inserido em tudo, e seu ser não delimita qualquer fronteira de fato, apenas em sua razão, pois o humano está, na verdade, circundado por uma mescla de
coisas, um mistifório em que os limites, fronteiras, etc, estão diluídos em uma complexidade que ultrapassa a consciência e a compreensão. UM AMOR FELIZ: A poeta questiona a consistência e
até a existência de um amor feliz neste poema repleto de ironia: “Um amor feliz. Isso é normal,/isso é sério, isso é útil?/O que o mundo ganha com dois seres/que não veem o mundo?”. Diante
de um mundo hostil e acidentado, este amor feliz é descrito no poema como uma provocação: “Enaltecidos um para o outro sem nenhum mérito,/os primeiros quaisquer de milhões, mas
convencidos/que assim devia ser – como prêmio de quê? De nada;/a luz cai de lugar nenhum -/por que justo nesses e não noutros?/Isso ofende a justiça? Sim.”. Não seria um fato da justiça, nem
algo espiritualmente justo, este amor feliz atua no poema como uma subversão de uma ordem natural de aridez, de ambientes inóspitos à plenitude dos sentimentos e de sua boa sucessão, no que
temos : “Observem estes felizardos :/se ao menos disfarçassem um pouco,/fingissem depressão, confortando assim os amigos!/Escutem como riem – é um insulto./Em que língua falam – só entendi
na aparência./E esses seus rituais, cerimônias,/elaborados deveres recíprocos -/parece um complô contra a humanidade!”. Esta provocação é descrita pela poeta em fina ironia, e ainda se
questiona mesmo a necessidade deste tipo de acontecimento no mundo, no que segue : “É difícil até imaginar onde se iria parar,/se seu exemplo fosse imitado./Com que poderiam contar a
religião, a poesia,/o que seria lembrado, o que, abandonado,/quem quereria ficar dentro do círculo?” (…) “Um amor feliz. Isso é necessário?/O tato e a razão nos mandam silenciar sobre
ele/como sobre um escândalo das altas esferas da Vida./Crianças perfeitas nascem sem sua ajuda./Nunca conseguiria povoar a terra,/pois raramente acontece.” (…) “Os que não conhecem o amor
feliz que afirmem/não existir em lugar nenhum um amor feliz.” (…) “Com essa crença lhes será mais leve viver e morrer.”. A descrença dos infelizes sobre esta realidade os confortaria, enfim,
pois a hostilidade de um mundo com tão poucas oportunidades à uma maioria, ver algo de tão pleno neste meio seria uma ofensa à própria existência como esta normalmente se dá, nesta ordem do
mundo fundada em limitações e desditas. LIVRO V – UM GRANDE NÚMERO SALMO: A visão de um mundo unívoco, sem divisões, aqui aparece à poeta como a tematização da natureza, em como esta se
funda indiferente às fronteiras humanas, e assim segue: “Oh, como são permeáveis as fronteiras dos países!/Quantas nuvens flutuam impunemente sobre elas,/quanta areia do deserto passa de um
país a outro,/quantas pedras da montanha rolam para terras alheias/com saltos desafiadores.” (…) “Devo mencionar um a um cada pássaro que voa/ou que pousa na barreira abaixada da fronteira?”
(…) “Oh, abranger com um único olhar essa confusão/sobre todos os continentes!/Pois não é a alfena da outra margem que/contrabandeia pelo rio sua centésima-milésima folha?/E quem senão o
polvo de longos braços impertinentes,/viola os limites sagrados das águas territoriais?” (…) “E como se pode falar de uma ordem qualquer,/se nem dá para separar as estrelas/para saber qual
brilha para quem?”. A poeta enumera diversos exemplos de como a natureza, não possuindo limitações e fronteiras, atua livremente, e o mundo cósmico, também como natureza, é tal qual, sem as
marcações da dimensão humana, em que se vê o nativo e o estrangeiro, e o governo das diferenças se impõe, e isto ocorre cercado de um mundo natural em que a mescla, uma grande amálgama, não
se importa com linhas demarcatórias e as diferenças entre regiões, seres, etc. No que temos : “E esse condenável dispersar da neblina!/E o pó que pousa sobre toda a estepe,/como se ela não
estivesse dividida ao meio!/E o ressoar das vozes nas complacentes ondas do ar:/pipilos apelativos e gorgolejos sedutores!” (…) “Só o que é humano pode ser verdadeiramente estrangeiro./O
resto é bosque misto, trabalho de toupeira e vento.” NÚMERO PI: A matemática é um governo de grandezas e infinitesimais, vai ao macro e ao micro, e possui ao mesmo tempo perfeições bem
acabadas e aporias inextricáveis, e a poeta exemplifica aqui o número Pi como uma destas desproporções num mundo que o senso comum entende como razão e proporção, e a desproporção e grandeza
imensurável se dão aqui numa sequência que em Matemática se chama número irracional, sem dízima periódica, Pi como um grande caos numérico que se estende indefinidamente, desafiando a busca
de uma constante, sob pena do pesquisador ficar louco: “O admirável número Pi/três vírgula um quatro um./Todos os seus algarismos sucessivos também são iniciais,/cinco nove dois porque não
acaba nunca./Não se deixe abranger seis cinco três cinco pelo olhar/oito nove pelo cálculo/sete nove pela imaginação,/e nem três dois três oito numa piada, ou seja, na comparação/quatro seis
com qualquer coisa/dois seis quatro três no mundo./A cobra mais comprida da terra acaba depois de alguns metros./O mesmo, embora um pouco depois, fazem as cobras das fábulas./O desfile de
algarismos que compõem o número Pi/não para na margem da página,/consegue estender-se pela mesa, pelo ar,/pelo muro, folha, ninho de pássaro, nuvens, direto para o céu,/por toda a extensão e
profundeza do céu.” A ironia da poeta se dá entre a citação da sequência numérica e suas colocações de mofa e chiste, no que vem: “e mais pede-se manter a calma,/e também o céu e a terra
passarão,/mas não o número Pi, esse não, nada disso,/ele ainda está aí com seu passável cinco,/um nada mau oito,/um não último sete,/incitando, ah, incitando a indolente eternidade/a durar.”
Aqui se abre uma fresta da eternidade, de um caos indefinido, interminável e incompreensível. Gustavo Bastos, filósofo e escritor. Blog: HTTP://POESIAECONHECIMENTO.BLOGSPOT.COM