Uma grande casa inglesa

Uma grande casa inglesa


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E embora seja apresentada já no mandato da nova diretora do Museu Gulbenkian, a inglesa Penelope Curtis – que chegou em março à Avenida de Berna após deixar o cargo de diretora da


prestigiada Tate Britain –, a história desta exposição começou muito antes de as 56 obras aqui chegarem, mais precisamente em 2011, ainda com João Castel-Branco como diretor do museu. E foi


também o resultado de uma confluência de interesses. Luísa Sampaio, comissária da exposição, conta que houve um contacto inicial entre a atual proprietária, Lady Juliet Tadgell – descendente


de Thomas Wentworth, o conselheiro-mor de Carlos I e iniciador da coleção, no início do século XVII – e os serviços da FCG. O interesse surgiu do facto de o antigo marido de Lady Juliet ter


sido amigo do filho de Calouste Gulbenkian. A aproximação tornou-se natural e começou a fazer cada vez mais sentido a fundação portuguesa acolher uma parte da coleção desta grande casa


inglesa. «Há muitos pontos comuns entre as duas coleções, embora uma tenha sido feita ao longo de 400 anos e outra de uma forma muito rápida, em 60 anos. Há um gosto pelo retrato e pela


paisagem, por exemplo. O próprio Gulbenkian comprou um Van Dyck que depois doaria ao Museu Nacional de Arte Antiga, O Retrato de Lucas Vorsterman». Logo em 2011, Luísa Sampaio esteve na


grande casa inglesa onde agora se aloja a coleção, um local que é mantido sob alguma reserva (a coleção é visitável apenas por pequenos grupos especializados). A antiga mansão, mandada


construir no século XVIII – e que tinha a maior fachada de uma propriedade privada na Europa (185 metros de comprimento) – foi em 1948, ano da morte do pai de Lady Juliet Tadgell, o oitavo


conde de Fitzwilliams, vendida. Logo a seguir ao pós-guerra, devido ao aumento dos impostos sucessórios e condições cada vez mais duras, muitas famílias aristocráticas desfizeram-se das suas


mansões. A série de televisão Downton Abbey (embora se situe umas décadas antes) conta essa história da luta pela manutenção da propriedade numa grande mansão no Yorkshire, precisamente o


condado da casa Wentworth -Fitzwilliams. Não é de estranhar que a exposição pareça mesmo muito familiar a quem segue a série. Partes do ADN são comuns. «Sim, quisemos recriar aqui um pouco a


sensação de uma casa senhorial inglesa». O verde e o cor-de-tijolo em que foram pintadas as paredes do museu ajudam a essa recriação. Faltam o chá e os scones. Mas, apesar das várias


peripécias dos tempos, a coleção Wentworth-Fitzwilliams acompanhou os 400 anos da História e do poder de Inglaterra de perto e sobreviveu mantendo-se na mesma família. Em 1948, com a venda


da casa, uma boa parte da coleção foi vendida, mas preservou-se um núcleo imponente, onde avultam os grandes retratos de Van Dyck, as pinturas de Stubbs, de que Charles Watson-Wentworth,


segundo marquês de Rockingham, foi mecenas. «Houve um grande esforço de preservação e de manutenção do património, o que é algo que, nestes tempos conturbados, é muito valioso», comenta


Luísa Sampaio. A atual proprietária continua a preencher as lacunas da coleção e a fazê-la crescer, sobretudo com paisagem – como uma pintura de Van Ruysdan que está exposta e um Canaletto­–


naturezas mortas e pintura religiosa. Algumas destas peças mais recentes também estão expostas na Gulbenkian, como uma «excelente» Virgem e o Menino, de Hans Memling.  A primeira peça da


exposição é um catálogo de 1870 «que é fundamental, que ajuda a perceber o que foi a coleção e como ela estava no final do século XIX. E dá para perceber que apesar de não existirem tantas


pinturas como as 258 inventariadas, o predomínio do retrato mantém-se». Ao longo dos séculos, enquanto ainda fazia aquisições, a família preocupou-se em preservar os retratos de grandes


figuras da família e dos reis que serviram. E o clã foi muito próximo de alguns monarcas de Inglaterra. A pintura que inaugura a exposição é um gigantesco retrato de Thomas Wentworth


(1593-1641), o primeiro conde de Strafford, vice-rei da Irlanda e conselheiro-mor de Carlos I. É um retrato de Anton Van Dyck, o discípulo predileto de Rubens, durante nove anos pintor da


corte de Carlos I e da aristocracia que gravitava à sua volta. Outros retratos de aparato executados por Van Dyck, «um pintor que influenciou o retrato em Inglaterra durante mais de 150


anos, com uma tipologia específica: figura em pé, coluna em fundo, cortina», dão o tom inicial. Ao lado de Thomas Wentworth, um retrato do próprio Carlos I, pintado também pelo influente


pintor de Antuérpia. «Foi uma doação do próprio rei ao seu conselheiro-mor, o que ilustra a importância da família junto da coroa de Inglaterra». O catálogo que fez em 1870 a primeira


inventariação da coleção está na exposição, aberto na página de abertura, onde uma aguarela reproduz uma famosa pintura agora na posse da National Gallery. Trata-se de Whistlejacket, o


cavalo empinado pintado por George Stubbs. E Stubbs é a segunda grande estrela da exposição da Gulbenkian: «Os ingleses adoram-no de tal forma que sempre que se sabe que há uma pintura dele


a ser vendida, há uma quotização para não ser vendida ao estrangeiro». Não há nenhum quadro de George Stubbs (1724-1806) fora dos países da Commomwealth. Muitos dos quadros do autor que


pintava retratos de cavalos, dando-lhes nome e personalidade, estão na coleção. «Não trouxemos todos, mas os que aqui estão são de primeira», diz Luísa Sampaio, explicando a generosidade do


empréstimo. O GULBENKIAN GENTLEMAN Na galeria de exposições temporárias, Calouste S. Gulbenkian e o Gosto Inglês conta outra parte da história, a dos anos em que Gulbenkian, vivendo em


Londres na sua casa de Hyde Park, se tornou um gentleman e desenvolveu a sensibilidade britânica, começando a sua coleção com essa influência de «curiosidade com o mundo, com o outro», como


era típico da aristocracia e da burguesia, que fazia o Grand Tour, visitando o itinerário artístico europeu, explica João Carvalho Dias, comissário da exposição.  A exposição mostra livros e


gravuras, muitas preciosas, «feitas por grandes gravadores, contemporâneos da revolução industrial», que difundiram o retrato, feito muitas vezes por grandes pintores. É o caso da imagem do


catálogo assinada por Eugène Gaujean, a partir de uma pintura de Edward Burne-Jones, em 1887. As obras expostas valem por si, e há uns regressos à Coleção Gulbenkian, como o Retrato do


General William Keppel, de Joshua Reynolds, que Calouste Gulbenkian doou ao MNAA e que agora volta temporariamente à Fundação. Mas a exposição é também uma manifestação do valor da arte como


património. As gravuras expostas estiveram «debaixo de água, envoltas em lamas» quando a coleção Gulbenkian estava depositada no Palácio do Marquês de Pombal, em Oeiras. Desde então até


2014 (data em que foi acabado de restaurar o último livro), «houve um processo minucioso e muito detalhado de restauro, e que beneficiou da experiência das inundações em Florença, no ano


anterior». [email protected]